sexta-feira, 9 de julho de 2010

A gente se acostuma,mas não devia - Marina Colassanti.


Um texto para ser pensado, sentido e bem refletido.


A gente se acostuma a morar em apartamento de fundo e a não ter outra vista que as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir todas as cortinas. E porque não abre todas as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado, porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo de viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter visto o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha os pés e sua no rosto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no final de semana. E se no final de semana não há muito a fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca, da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.

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